Catedral de Zaltar

A noite fria se instaurava pelas ruas de Hilydrus, o silencio era quase que absoluto na cidade, as pernas de Knock pediam descanso, pois o dia havia sido árduo e sem pausas. Estava cansado.

Não andou muito e chegou a Catedral, gastou um pouco de tempo admirando a fachada do local e constatou que era magnífica como Leroy havia dito, porém em vez de entrar e matar de uma vez a curiosidade que lhe sondava ficou pensando e pensando mais... Esperava que seus planos dessem certo pela primeira vez no tempo que estava na ilha.

Puxou a respiração e entrou; os portões já estavam abertos, talvez pessoas estivessem lá para pedir ajuda a Zaltar por causa do que Leroy havia contado na Taberna ou houvesse devotos fieis adorando a ele, Knock não sabia ao certo, porém logo iria descobrir. Os passos do golem se mostravam firmes e não demonstravam insegurança, porém o andar era lento e cauteloso, demonstrava respeito ao solo sagrado.

Andava sem fazer nenhum barulho por mais que a armadura parecesse pesada com o desgaste do corpo, até o seu respirar estava tranqüilo. À medida que andava, observava atenciosamente os detalhes do lugar, era simplesmente magnífico e grandioso, mostrava poder, digno de reis, Knock podia sentir uma paz sem igual naquele lugar, as cadeiras de madeira. O piso. A luz do luar que atravessava os grandiosos vitrais, era tudo muito belo e se o golem tivesse de descrever o lugar objetivamente ou subjetivamente não teria palavras para fazê-lo.

Porém todo o êxtase que o golem estava sentido fora quebrado no momento em que ouviu vozes, escondeu-se rapidamente tomando cuidado para não fazer nenhuma espécie de barulho, eram duas vozes, uma um tanto doce e a outra era maligna, obscura. Knock, escondendo-se, tentou ver os indivíduos que ali conversavam de maneira que eles não pudessem notar sua presença; não era um culto a Zaltar, parecia mais uma conversa entre irmãos.

O primeiro rapaz, o que tinha a voz doce, falava com agressividade com o outro, porém esse demonstrava sarcasmo, suas falas eram cheias de provocações e malícia, pelo o que Leroy o havia dito seres com aquela índole não poderiam entrar naquele local, porém não se importava muito com esse fato, só não queria entrar em uma confusão no templo. Então ficou ali, escondido, ouvindo a conversa dos dois, talvez não fosse a melhor opção para se tomar, mas pelo menos iria descansar as pernas e se entreter, pois a conversa estava interessante.

Os músculos de Knock já estavam relaxando, ainda em decorrência do dia agitado, quando algo inesperado, pelo menos para si, aconteceu, o jovem, o qual parecia estar se controlando, invocou um tipo de arma que nunca vira antes, a qual o fazia lembrar-se de uma espada, e atacou ao outro... Uma cena tão surreal, tão rápida, que fez com que todo o cansaço do golem desaparecesse como se fosse bombardeado por uma grande quantidade de adrenalina.

O ataque rápido unido à “espada” e às chamas se mostrava mortal e deveria ser totalmente eficaz, porém mais uma vez fora surpreendido... O cavaleiro defendera tudo aquilo com um simples movimento sem ao menos causá-lo danos aparentes. O som da arma batendo na armadura ecoava no silêncio quase que absoluto da Catedral. Era realmente muito forte. Isso fez com que Knock pensasse se poderia lutar com alguém daquele nível... Por um momento pensou nas breves palavras de Leroy dizendo que ainda não era bom o suficiente para andar com ele... Talvez estivesse certo.

Uma aura ruim parecia emanar do ser maligno e fazia com que a harmonia e a paz que o golem, antes, sentia fosse desequilibrada, na verdade parecia diminuir tanto a ponto de quase não existir... Com um movimento, o cavaleiro, ergueu o garoto, fazendo-o assim perder as forças... Knock vendo isso teve vontade de levantar-se e enfrentar o ser, mesmo não sendo capaz de derrotá-lo, porém achou que seria impulsivo e imprudente... O garoto poderia acabar sendo morto... Então o ser de luz controlou-se... Ficou ali, estático, vendo o rapaz desfalecendo com o forte golpe do outro.

– Acha que você é livre, caro irmão? Acha mesmo que foi sorte você ter escapado de mim quando era apenas um pivete? Acredita mesmo que foi por puro acaso que logo o rei de Hilydrus o adotou? E acho que não falta muito agora para você descobrir o porquê de você ser o único sobrevivente da família real...!

Para Knock as palavras do cavaleiro mostravam a sagacidade e a maldade máximas de um ser... Ele não parecia humano, parecia mais com um demônio... Somente um ser desse tipo poderia ter uma índole dessa natureza... A cada instante que passava mais raiva surgia no coração de Knock, porém não iria fazer nada... Pelo menos não por enquanto... Nem ao menos os conhecia, porém já detestava o ser e nem ligou ao fato de o garoto ser o príncipe de Hylidrus... O único herdeiro do trono... A história ainda estava meio embasada aos olhos do entendimento do golem, a espera iria fazer com que ele soubesse toda a verdade... Isso lhe traria conforto à raiva e o faria ter mais paciência, faria com que voltasse a ser cauteloso; a curiosidade, embora má, se mostraria útil naquele instante.

Agora tudo estava esclarecido; a verdade fatídica surgia dolorosa e até mesmo impiedosa... Knock não conseguia acreditar... O silêncio da Catedral era perturbado pelos gemidos ofegantes do príncipe, gemidos não de dor, mas sim de raiva, ódio.

O rapaz cerrava os dentes, parecia lutar consigo mesmo a fim de obter respostas dos músculos, os quais se mostravam inoperantes ao movimento do ser amaldiçoado... As palavras iníquas do cavaleiro pareciam desequilibrar mais ainda ao jovem... Será que Zaltar não era capaz de ver aquilo? Será que nem tal maldade era capaz de acordá-lo?... Eram perguntas que passavam a atormentar o espírito do golem, porém nada podia fazer além de observar calado...

O cavaleiro lançou ao próprio irmão em direção ao portão da catedral com uma força tão grande que mesmo alcançando o chão ainda percorrera alguns metros.

– Um rapaz justo que luta pelo seu povo e que faria tudo pela doce princesa? Não, este não é meu irmão! Sangue do meu sangue! Isto que todos conheciam era apenas uma máscara distorcida, criada para você chegar aonde chegou! Agora, meu caro irmão, vou te ajudar a arrebentar essas amarras que impedem que você mostre seu verdadeiro caráter!

O corpo do jovem passara junto ao local onde o golem estava escondido, porém nada podia ver... O rapaz atirado ao chão parecia não responder mais, talvez estivesse desmaiado, nem mesmo a respiração ofegante era ouvida. A frase dita se alastrava como uma adaga não afiada que perfurava o coração do golem... Como poderia ser, ignorar o próprio sangue?... O pensamento atacava o ser de luz, porém, mais uma vez optou pelo racional e ficou ali estático, mesmo que, agora, corresse risco de ser visto.

Knock pensou várias vezes em interromper a briga, mas ficou “calmo” perante a situação... Ficou olhando o corpo do príncipe inerte ao chão e ouvindo as falas do outro, quando de repente uma aura negra atacou ao jovem; o cavaleiro a havia lançado e agora o príncipe gritava de dor... Uma coluna de fogo negro se levantou como uma torre onde o rapaz estava e a “luz” proveniente dela contaminou todo o lugar... O estranho fenômeno fazia com que tudo ficasse sombrio... Era tenebroso... Nem mesmo na guerra Knock presenciara tal... Podridão.

O jovem golem não podia conter-se... A raiva, o ódio... A compaixão pelo jovem... Faziam com que um verdadeiro monstro surgisse em meio às terras calmas de seu interior... Sua alma gritava de ódio... Queria dar fim a tudo aquilo... Queria matar o amaldiçoado ser... Entretanto conseguia domar-se, o treinamento que recebera era eficaz; tinha emoções, mas aprendera a ignorá-las.

Porém nem todo o treinamento árduo no qual foi submetido foi apto para fazer com que as emoções fossem totalmente ignoradas por ele... O golem lutava contra o seu instinto; contra os próprios músculos, os quais faziam com que sua mão tocasse a espada... Lutava contra si de todos os modos. Entretanto não teve cem por cento de êxito... Pela primeira vez desde o dia de seu surgimento Knock chorou... Não era um choro dramático cheio de histerismo, porém, lágrimas brotavam de seus “olhos”... Nem sabia se era capaz de fazer aquilo, porém não se prendeu a esse fato... Ver aquele menino se levantar “possuído” e saber que não poderia fazer nada para mudar aquela situação... Ver sua impotencia diante de todo aquilo... Acabava com o estado de calmaria no qual seu interior estava... As lágrimas rolavam silenciosas.

Passos se destacavam no silêncio. O desgraçado andava rumo ao encontro do rapaz, agora possuído, ele com certeza não era mais o mesmo... Seus cabelos cobriam o rosto, parecia muito com o cavaleiro mesmo não tendo mudado radicalmente. Agora o cavaleiro, mesmo não mudando a tonalidade sarcástica da voz, parecia ter um certo prazer em ter o irmão “de volta”... Parecia, agora, que compartilhavam mais que o sangue, pareciam compartilhar da mesma maldição.

—Tudo está perdido— Pensou o golem, porém uma voz soou na escuridão de seus pensamentos... Era a frase de Leroy:

– Como eu disse, bardos são como a lua, nós não temos brilho próprio. Não somos nada sem história. Então cabe a você fazer a sua própria, caro golem.

—Será que tenho opção, Será que posso me tornar um herói? , — A frase do bardo surgiu em sua mente como conforto ao coração do jovem golem... Porém... Agora eram dois... Se o cavaleiro já era forte sozinho, dois com poder e maldade ilimitados seriam invencíveis, pelo menos era o que o golem julgava... A esperança reascendera um fogo no golem... Iria esperar... Não sabia se lutaria com eles, porém sabia que não poderia ser um espectador simplório diante daquilo... Iria ser cauteloso, recuperar o fôlego, se acalmar...

— Fazer a minha história— Knock, pensava, teria de usar todo o seu treino a fim de ter sucesso, teria de usar toda a sua inteligência e força e ainda teria de ter cuidado para que não morresse, pois o seu pai ainda contava com sua ajuda... Todavia iria esperar um instante no qual achasse mais oportuno para realizar tal feito e também pensaria mais a respeito das conseqüências de tal ato...

— Zaltar... Perante toda a impunidade feita no teu templo... Perante toda a maldade feita abaixo de teus olhos... Ajude-me... Dá-me forças... Responda-me— O golem estava disposto a ser usado por Zaltar para acabar com aquilo... Na verdade fazia das suas suplicas mentais uma oração de invocação... Não poderia fazer nada sozinho e tinha plena consciência disso... — Zaltar ... Acorde!.

Knock estava agachado orando, de certa forma, quando de repente o jovem príncipe decidiu sair do recinto... Foi realmente estranho... Nem mesmo falou com o “cavaleiro negro”, porém não se interessou muito por esse detalhe, na verdade sentia-se confortável por ele tomar essa atitude, pois assim diminuía o perigo de estar ali naquele, péssimo, momento.

Entretanto, como quase tudo na ilha de Lodoss não costumava sair de acordo com os planos do golem, o rapaz, ao dar o primeiro passo em direção ao portão da catedral, notou a presença de Knock e olhando-o profundamente disse:

Seu deus não existe

E ao terminar a frase deu um forte chute em seu peito fazendo-o cair pelas escadas.

Knock não pensou em nada enquanto caia... O que teria para pensar a final de contas?... Sua armadura, mesmo sendo projetada para agüentar a uma guerra sem ser quebrada não pôde resistir a um simples golpe; parecia ser ínfima... Sua experiência em guerras não valia de nada... Porém mesmo não pensando, diretamente, em nada uma conhecida voz soou no silêncio de seu interior, era a voz de Leroy dizendo que ainda não era forte o suficiente.

Toda a tristeza... Todo o ódio... Todos os sentimentos ruins começaram a desaparecer aos poucos; o golem ao cair de vez ao chão ficou parado respirando e deduzindo algumas coisas... Já sabia o motivo de tê-lo deixado com vida, mas coisas ainda o perturbavam, mas nada do que tinha ocorrido era de importância sua, pelo menos foi essa a conclusão na qual chegou, Knock tinha uma missão central e não poderia dar-se ao luxo de arriscar fracassar nela.

— Bem, eu não sigo a esse deus mesmo— Knock ainda no chão coçou a cabeça, bocejou e continuou falando em sua mente— Bem, agora é juntar os cacos e continuar— O golem levantou-se, olhou ao redor e contatou que os dois haviam saído do lugar, então tirou a armadura, tinha sorte, pois ela possuía duas partes e a interna ainda estava inteira e em excelentes condições... Na verdade apenas o peitoral e as partes que havia se desprendido da armadura havia sido realmente danificadas, não tinha nenhum sangramento ou corte, pois enquanto caía protegia-se com a armadura.

Após retirar a parte externa de sua armadura ajeitou-se, pôs tudo em ordem, porém lembrou-se de que o menino havia deixado cair sua estranha arma e como ele tinha quebrado a maior parte de sua armadura externa, não achou que seria roubo se a pegasse, na verdade achava justo.

Porém antes colocou os “cacos” de sua armadura em seu sobretudo e o pôs como uma sacola em suas costas, talvez conseguisse concertá-la ou usar o metal para fazer algo útil. Depois de fazer isso subiu de novo às escadas para pegar a “espada” e depois sairia dali rumo à Paramet ou outro lugar no qual pudesse fazer algo com a armadura quebrada.

@ Klaus

A corrida deixou o meio-dragão totalmente acabado. Precisava realmente melhorar seu físico, mas não agora. Estava preocupado com toda aquela situação e tinha perdido o maldito ladino de vista. Por sorte, viu um vulto entrar na catedral e o seguiu até lá. Passou correndo pelas portas, bradando e voz alta, quando ouviu uma voz tranqüila que vinha do primeiro branco perto da porta. Era uma garota. Cabelos brancos, sem muita estatura e com a pele alva, somado a olhos cor de mel bem sedutores.

- Shhhh. Não se deve falar assim na casa de Deus.

E sorriu, lançando um olhar desafiador para Klaus enquanto balançava o livro na mão esquerda para cima e para baixo.